O debate sobre o Acordo Ortográfico continua a ser um elemento de divisão na sociedade portuguesa e nas culturas lusófonas em geral. Já oferecemos alguns elementos do argumentário, tanto neste blogue como no nosso site em facebook. Acaba de ser publicada, uma carta dirigida ao ministro da Educação e Ciência, na qual uma mãe portuguesa reuniu boa parte dos argumentos jurídicos e culturais que se evocaram, até ao momento, contra o Acordo que está a ser ensinado nas escolas. Alguns são importantes, outros mais precários. Entre estes últimos, figura uma citação de Fernando Pessoa:
"a) Fernando Pessoa, sobre a reforma de 1911, escreveu: "A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno, como não tem direito a impor-me uma religião que não aceito. [...]" (in "Pessoa Inédito"; Lisboa: Livros Horizonte, 1993)"
Neste contexto, há um certo perigo no aproveitamento de afirmações pessoanas (inevitavelmente estéticas, heteronímicas) sobre a língua portuguesa, a ortografia ou o universalismo da cultura portuguesa. Assim, em sentido restrito, desta citação só poderíamos deduzir um apelo ao individualismo anarquista em relação à ortografia, com as correspondentes consequências problemáticas (para o ensino, por exemplo). O argumento da autora torna-se, no entanto, ainda mais precário quando continua a afirmar que
"b) Escrita e oralidade são meios autónomos e complementares de manifestação do saber linguístico, em cada idioma. A importância da língua escrita (e da sua norma gráfica) é tanto maior quanto mais complexa e "textualizada" for a vida e a memória de uma sociedade, de uma cultura. A ortografia é garantia incontornável da estabilidade da língua escrita como elemento-chave da identidade nacional, visto que assegura em si mesma a inteligibilidade e a continuidade na transmissão do acervo histórico-cultural, da memória colectiva, de geração em geração, e é além disso portadora de uma simbólica e uma poética próprias, cuja delicada subtileza e riqueza se relacionam intimamente com a antiguidade da língua em apreço e com todo o património literário que lhe está associado."
Elevar a ortografia a "elemento-chave da identidade nacional", por muito questionável que o Acordo Ortográfico possa ser em termos jurídicos ou linguístico-culturais, ou é um excesso essencialista ou um mau uso de essencialismo estratégico. Nem a ortografia nem a própria língua seriam, em termos de diacronia, indispensáveis para a conformação e manutenção de uma identidade cultural. As diferenças nas falas e escritas (e não só das literárias) das variantes do português no espaço lusófono, em contínua evolução desde há séculos, são uma evidência. Por isso, nem seria preciso instituir uma forma ortográfica comum para que os vínculos linguístico-culturais permaneçam, nem seria imprescindível que cada estado lusófono mantivesse uma postura conservadora em relação à ortografia da sua variante. Em todo o caso, as variantes linguísticas e culturais da Lusofonia só se enriquecerão mutuamente na medida em que se desvinculam dos essencialismos históricos.
2 comentários:
Mesmo sabendo que o "estudoslusofonos" resiste ao Acordo, deixo o endereço do blogue que, embora assumindo na divulgação crítica do AO, se centra essencialmente na promoção da língua portuguesa: http://acordo-ortografico.blogspot.com
Cumprimentos.
Prof António Pereira
Agradecemos muito o comentário. A nossa resistência não pretende ser, de maneira nenhuma, contraprodutiva. De facto, na Universidade de Vigo ensinamos a Língua Portuguesa segundo o Acordo Ortográfico. Porém, acompanhamos com atenção e informamos, na medida das nossas possibilidades, o debate que se continua a dar em toa a Lusofonia.
Saudações cordiais
Estudos Lusófonos
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