Bernardo Santareno (1920-1980), pseudónimo de António Martinho do Rosário, nasceu em Santarém e faleceu em Lisboa. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, tendo-se especializado em psiquiatria.
É considerado um dos maiores dramaturgos portugueses do século XX, cuja obra se costuma dividir em dois ciclos: No primeiro, domina a reivindicação do direito à diferença e do respeito pela liberdade e dignidade do ser humano face a todas as formas de opressão e preconceitos morais e sociais da época, enquanto o segundo se caracteriza por um tipo de teatro mais interventivo no processo de transformação da sociedade até à queda do regime fascista e que se dirige contra todo o tipo de discriminação, política, racial, económica, sexual ou outra.
Peças integrantes do primeiro ciclo: A Promessa, O Bailarino e A Excomungada, publicadas conjuntamente em 1957; O Lugre e O Crime de Aldeia Velha, 1959; António Marinheiro ou o Édipo de Alfama, 1960; Os Anjos e o Sangue, O Duelo e O Pecado de João Agonia, 1961; Anunciação, 1962.
Segundo ciclo: Inicia-se a partir de 1966, com a "narrativa dramática" O Judeu, seguido de O Inferno (1967), A Traição do Padre Martinho (1969) e Português, Escritor. O drama autobiográfico 45 Anos de Idade (1974) seria o primeiro original português a estrear-se depois da revolução. Mais tarde publica ainda Os Marginais e a Revolução (1979).
Santareno publicou não só textos dramáticos, como também poesia e prosa, tendo sido distinguido três vezes com o Prémio Imprensa.
O Judeu é uma narrativa dramática em 3 actos, publicada em 1966 e estreada em 1981 no D. Maria II, com encenação de Rogério Paulo. Generalizadamente considerada como uma obra maior de todo o teatro português, retrata o calvário do dramaturgo setecentista António José da Silva, queimado pelo Santo Ofício em 1739. António José da Silva, autor de comédias e óperas, nasceu em 1705 e ganhou popularidade com o teatro de bonifrates, uma imitação jocosa da ópera italiana muito popular na época. O carácter satírico das suas peças irritou um Santo Ofício dedicado a combater o Iluminismo e o racionalismo com autos de fé, aos quais o povo fantizado assistia como a um espetáculo.
A peça começa com um António José da Silva, filho de judeus e cristão-novo, com 21 anos de idade e estudante de Direito, a viver com receio de ser torturado e encarcerado pela Inquisição, algo que acontece logo no início da obra, com um auto-de-fé, onde o protagonista, sua mãe, Lourença Coutinho, e outras pessoas ouvem o seu julgamento e os insultos do povo. Será um auto de fé no qual destaca a retórica manipulatória do sermão do sacerdote convidado. Esta manipulação e intolerância caracterizam um Portugal obscurantista, o qual, ao longo da peça, será ironizado e criticado pelo Cavaleiro de Oliveira, um escritor português que se refugiara no estrangeiro para fugir à Inquisição e que tem a função de narrador-comentador. Esta personagem estabelece a ligação com o público e até invoca diretamente o público português do momento como "sombras fugidias da esperança e do temor". O Cavaleiro defende constantemente a inocência de António e critica a situação do país:
“Que Portugal seja um relógio, em muitos anos atrasado da hora que segue a Europa civilizada […] Quando toda a Europa esquecendo vai já o repugnante pesadelo dos autos-de-fé, quando mesmo a vizinha Espanha cuida de os espaçar e esconder…Portugal lança-os aos olhos horrorizados do mundo […] Protesto! Porque à Inquisição se deve o empobrecimento do Reino; porque, para subsistir, o Santo Ofício inventa judeus como outros fabricam moeda…!”
O carácter de processo, assim como os jogos de luz e sombra e o recurso a gravações e projeções pretendem produzir um efeito de distanciação do público, seguindo a matriz do teatro épico (cf. também este link) de Bertolt Brecht. A intenção é mostrar a proximidade entre os valores e as crenças do tempo dos autos de fé e aqueles da sociedade do Estado Novo, o que sublinham as semelhanças físicas e linguísticas entre Salazar e algumas personagens, como o Inquisidor-Mor, a presença da PIDE, representada pelo Estudante Pálido ou o presságio do Holocausto através do sonho profético de Lourença, mãe de António José.
Quando o Estudante Pálido fita António José da Silva de um forma cruel e intensa, causando-lhe terror e insegurança, o Cavaleiro de Oliveira traça uma comparação indirecta entre o clima de terror e medo da Inquisição e da repressão salazarista:
"(Com desgosto e revolta), Medo. O mesmo medo que enruga a mais pura alegria, que gera cobras na cama dos amantes, que deita neve nos mais negros cabelos, que seca o leite no peito das mães… No meu país quem governa é o medo! Os olhos e os ouvidos do medo crescem e multiplicam-se por toda a parte: Nem o pai, nem a mãe, nem a esposa,nem o irmão servem de porto abrigado; armadilhas de traição eles podem ser também. Em Portugal, as varejeiras do medo por toda a banda voam e em todas as cousas, vivas e mortas, de imprevisto pousam. Muitas, muitíssimas são; sem conto, realmente. As nojentas, as ardilosas, as pestíferas varejeiras do medo!
(Aponta enérgico para o sítio do palco onde o Estudante Pálido, meio oculto entre as pregas da cortina de fundo, aparece espiando o Judeu:)
Espião miserável, varejeira maldita!!
(O Estudante Pálido, como uma sombra, logo desaparece.)
Conhecem-se pelo fedor a podre, pela luz assassina dos olhos…
(Levanta-se com ímpeto; escarninho, desesperado:)
Na Europa civilizada, Portugal é a fortaleza do Medo; espiões e polícias, os seus alicerces e guarda!"
(Aponta enérgico para o sítio do palco onde o Estudante Pálido, meio oculto entre as pregas da cortina de fundo, aparece espiando o Judeu:)
Espião miserável, varejeira maldita!!
(O Estudante Pálido, como uma sombra, logo desaparece.)
Conhecem-se pelo fedor a podre, pela luz assassina dos olhos…
(Levanta-se com ímpeto; escarninho, desesperado:)
Na Europa civilizada, Portugal é a fortaleza do Medo; espiões e polícias, os seus alicerces e guarda!"
No final da peça, depois da imolação de António José pelo fogo, o Cavaleiro de Oliveira grita «Iluminai o Povo de Portugal!». Ao reclamar que só um povo esclarecido será capaz de combater as atrocidades que se repetem ao longo dos tempos, o Cavaleiro de Oliveira culmina a preocupação didática da peça.
Material sobre vida e obra de António José da Silva:
Seleção de bibliografia sobre O Judeu:
BARATA, José Oliveira: Para uma leitura de O Judeu, de Bernardo Santareno. Porto: Contraponto 1983.
BOTTON, Fernanda Verdasca: “O
drama que exige ação: o teatro político de Bernardo Santareno”, in Travessias 2008.
COELHO, Maria da
Conceiçao; AZINHEIRA, Maria Teresa: O
judeu [de] Bernardo Santareno. Mem Martins: Europa América 1995.
DELILLE, Maria
Manuela Gouveia: “O judeu de Bernardo Santareno: suas relações com o teatro
épico de Bertolt Brecht e com o teatro de Peter Weiss”, in Runa: revista portuguesa de estudos germanísticos, nº 2, 1984, pp.
53-76.
LETRAS SUSPEITAS:
“O Judeu, de Bernardo Santareno”.
MEDEIROS, Ana
Paula: Do teatro em Bernardo Santareno.
Tese mestrado em Literatura Portuguesa, Universidade de Coimbra, 1996.
SILVA, Eduardo Neves da: “A
representação ficcional do comediógrafo Antônio José da Silva em O Judeu, de Bernardo Santareno”, in Revista Letras Fafibe, nº 2, 2011.
SOARES, Etelvina Maria de Jesus: O trágico em Bernardo Santareno. Tese mestrado em Literatura Portuguesa, Universidade de Coimbra, 1996.
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